A gamificação dos investimentos
O papel do jogo, das redes sociais e da tecnologia na forma como investimos.
A ideia deste artigo surgiu de uma entrevista que ouvi do Ray Dalio (futuramente hei-de dedicar-lhe um artigo), onde ele falava dos “gamified investments”. Fiquei a pensar nele porque está relacionado com algo de que já falei anteriormente e que está relacionadas com a origem deste Diário Cinzento - há coisas que é normal serem aborrecidas.
Enquanto que os artigos aqui do Diário se baseiam essencialmente em dados e factos, o artigo de hoje, é mais um “artigo de opinião” sobre este tema e o impacto que ele tem na forma como investimos.
O jogo
Acho que qualquer pessoa com mais de 35 anos, quando pensa em investimentos ou na bolsa, as primeiras imagens que lhe vêm à cabeça, devem ser aqueles tipos de fato em Wall Street, agarrados aos telefones, aos berros uns com os outros, a correr de um lado para o outro com pastas e folhas nas mãos.
Isto foi no século passado e apesar de não estarmos aqui para uma aula de História, é sempre bom contextualizar as coisas.
Entretanto, veio a internet e todas as coisas boas (e menos boas) e a democratização de uma série de áreas, entre elas, a dos investimentos.
Hoje em dia, já sabemos que não se trata de algo exclusivo para pessoas ricas ou para especialistas de fato que sacam comissões absurdas - embora estes ainda existam mas, quem sabe, talvez sejam uma daquelas raças em vias de extinção.
Esta democratização dos investimentos, trouxe também algumas coisas estranhas como emojis aquando da compra/venda de activos, animações típicas de jogos de slot machines, desafios de dias consecutivos com ganhos e outras “medalhas”, em apps que começam a assemelhar-se mais a redes sociais, do que a análise técnica, dados contabilísticos e outras coisas que há uns anos faziam bocejar a maioria das pessoas, quando se falava de investimentos.
Se, por um lado, estas apps que usamos tornam a coisa mais animada - nada de errado nisso - criam também uma espécie de ilusão - a de que investir é como um jogo.
E talvez isto nem seja coisa de agora. Eu, como talvez muitos de vocês, já deverão ter ouvido a expressão “jogar na bolsa”.
Quem já estudou minimamente a coisa ou que seja uma pessoa atenta, já terá reparado também que quem tem o discurso de “jogar na bolsa” ou “apostar na acção X ou na cripto Z”, são pessoas que se enquadram num destes dois tipos:
Dizem que os mercados são uma aldrabice (geralmente, também perderam parte ou a totalidade do que investiram);
Ganham dinheiro, gabam-se dos seus resultados mas, por algum estranho motivo, são incapazes de explicar aos outros como podem fazê-lo também;
Isto não é algo propriamente novo.
A tecnologia só facilitou a transformação de uma coisa que era aborrecida, em algo a que maioria das pessoas adere com facilidade: uma app que se assemelha a um jogo de telemóvel, sem grandes custos e com a possibilidade de ganhar bom dinheiro.
Uma forma fácil de constatar isto, é através das críticas que se encontram online a algumas corretoras, por contraposição aos elogios que se fazem a outras.
👎 Degiro e IBKR: duas das corretoras mais criticadas em termos de interface do usuário. A experiência de utilizar estas apps, é muito parecida à de usar programas de computador de há 10-15 anos atrás. Além de serem visualmente pouco apelativas, também não são as mais intuitivas.
👍 Trading 212, Trade Republic, XTB: visualmente muito mais agradáveis e também mais intuitivas. Qualquer pessoa que não tenha experiência de investimentos, mas que esteja habituada a usar apps no telemóvel, é capaz de dominar as apps destas corretoras ao fim de pouco tempo.
Em termos de Acções e ETF’s, qualquer uma das corretoras mencionadas serve. As primeiras, parecem estar mais orientadas aos investidores de antigamente. As últimas, parecem mais focadas nas novas gerações e em proporcionar uma espécie de experiência social associada aos investimentos.
No caso das corretoras de Cripto, o caso da gamificação é ainda mais gritante.
Coinbase e Kraken, parecem ser as mais direccionadas para investidores. Compra, venda, staking, algumas ferramentas de análise - o necessário para qualquer investidor/a.
As restantes... misturam isto, com vertente social e com desafios constantes. Tudo o que estimule a pessoa a abrir a app diariamente, juntamente com várias pop-ups a incentivar à participação em algum evento com potenciais retornos chorudos.

Mais uma vez, quero realçar que acho interessante a ideia de tornar os investimentos em algo menos aborrecido. Mas, colocá-los ao nível de jogos e de apps de apostas, parece-me um caminho ilusório e que, para pessoas menos informadas, pode ser perigoso.
Redes sociais e Influenciadores
Temos de falar destas duas componentes, claro.
Ainda relacionado com o ponto anterior - dos públicos alvo - não me recordo de alguma vez ter visto um vídeo patrocinado pela IBKR. Pela Degiro, nos anos mais recentes, também não.
Sim, estas duas corretoras são frequentemente mencionadas por influenciadores, mas por serem nomes de referência e não por serem seus patrocinadores.
Já as restantes corretoras... é só escolher. Cada influenciador faz aquilo que lhe compete para se financiar e, se a audiência de algumas corretoras são as novas gerações, faz sentido que patrocinem conteúdos de influenciadores.
Depois também há fenómenos estranhos... como pessoas a partilharem os seus prejuízos nas redes sociais, por vezes, com vários dígitos negativos. Mas, suponho que para as novas gerações, a dor desse prejuízo seja atenuada com uns milhares de “gostos” e partilhas.
O inverso também acontece e ainda é mais perigoso. Com a mesma facilidade que se partilham resultados negativos, também se partilham os positivos e com muito mais frequência.
O problema é que algumas pessoas deixam-se entusiasmar pelos repetidos resultados positivos de determinado influencer, e esquecem-se que printscreens partilhados numa rede social, podem ser manipulados.
Nem tudo é mau!
Antes que me apelidem de Velho do Restelo, quero salientar algo em que acredito: a tecnologia serve para alavancar ferramentas, serve para as tornar melhor e mais eficientes.
A diferença está na forma como as pessoas a utilizam.
Graças a isto e ao bom senso:
Há cada vez mais pessoas a investirem - e, muitas têm conseguido melhorar substancialmente as suas vidas.
O bom senso e a vontade de aprender, ajudam a que estas pessoas encarem os prejuízos como lições. Como erros a não repetir. Com o mindset correcto, um mau investimento, pode ser tão ou mais valioso do que um curso.
Juntando o ponto anterior à tecnologia, uma pessoa precisa apenas de um smartphone e acesso à internet, para poder investir e melhorar a sua condição financeira. Já não é preciso ser rico, morar numa cidade grande, vestir fatos caros ou endividarmo-nos para tirar um curso.
Game Over
A gamificação dos investimentos pode ser perigosa, mas não é propriamente o lobo mau disfarçado de capuchinho vermelho.
Esta tendência actual dos investimentos traz barulho, ruído, alguns emojis parvos e confettis que não fazem sentido nenhum.
Tendo consciência de tudo isto e sabendo que estamos a falar de meras ferramentas, o resto resume-se à velha questão da “selecção natural”:
Quem correr atrás dos jogos de dopamina, aumenta as probabilidades de determinado resultado.
Quem conseguir manter-se calmo/a, analítico/a e paciente, aumenta as probabilidades de outro tipo de resultados.
A História, seja a mais recente, seja a dos investidores da velha guarda, continua a ser das melhores professoras.
Ironicamente, num mundo que fomenta a proactividade e a acção constante, os investidores com os melhores resultados, têm sido aqueles que sabem quando estar quietos e quando agir e, acima de tudo, que se mantêm atentos.
NOTA: como de costume, os nomes aqui mencionados, são os de empresas de referência no sector e não são qualquer tipo de recomendação.
Cabe a cada a pessoa, fazer as suas próprias análises, antes de agir.
Investir implica colocar o capital em risco.



